Sinais de Vida Imprimir E-mail
Horst Hoheisel

Sinais de Vida
Papel de Memória [Sao Paulo 2003]




Sinais de vida: desenhos de Horst Hoheisel

A mostra de Horst Hoheisel, que ocupará a partir de outubro a sala de exposições temporárias do Museu Lasar Segall, está inserida em uma das linhas da política de exposições da instituição, que pretende estimular o diálogo da obra de Lasar Segall com o trabalho de outros artistas.

Hoheisel é um artista reconhecido internacionalmente por seu trabalho conceitual em torno da memória e do holocausto, tema bastante presente na obra de Segall.

Não apenas dedicado ao trabalho conceitual em torno do Holocausto, a preocupação do artista em torno do esquecimento e memória, revela-se na problemática sobre o destino dos inúmeros desenhos que elabora quotidianamente há quase 20 anos. São anotações que assumem o caráter de um diário, como ora como registros dos sonhos da noite anterior, ora como testemunhos de seus sentimentos e vivências.

A atmosfera compulsiva do trabalho do ateliê e o problema do seu não-destino, materializados pelas pilhas e rolos de desenhos que se acumulam incessantemente, é o mote da mostra de Hoheisel no Museu Lasar Segall. Dessas pilhas, o artista retirou uma série de 50 desenhos feitos a partir de sua experiência com a tribo dos Yanomami, trazendo mais uma vez à lembrança, a ameaça do esquecimento.

Esta mostra estabelece diálogos institucionais com a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Centro Universitário Mariantonia, onde recentemente foram apresentadas instalações do artista em torno da rememoração dos traumas vividos pelos sujeitos confinados ou mortos pela ditadura militar no Brasil. Representa também o estreitamento das contínuas ações desenvolvidas em parceria com o Instituto Goethe, com o qual o Museu Lasar Segall vem desenvolvendo frutíferos projetos. Denise Grinspum

Horst Hoheisel

Nasceu em Posen, Alemanha, em 1944. Durante seus estudos em ciências florestais, foi aluno ouvinte na Academia de Artes de Munique. Promoveu a ecoanálise de uma floresta tropical da Venezuela, tendo sido assistente científico do Instituto de Engenharia Florestal dos trópicos na Universidade de Göttingen. Simultaneamente aos estudos de arte na Academia de Arte de Kassel, viveu numa comunidade indígena Yanomami no Orinoco- Amazonas, Brasil. Viajou, ainda, por diversas vezes para o deserto do Saara.

Durante mais de vinte anos, Horst Hoheisel dedicou-se artisticamente ao nacional-socialismo e, com Andreas Knitz, elaborou e realizou novas formas de monumentos que ficaram conhecidos internacionalmente como monumentos-negativos ou contra-monumentos (www.zermahlenegeschichte.de).

Ao lado dos marcos de memória em espaço aberto, seus trabalhos também fazem parte de diversos acervos de vários museus internacionais (Museum of Modern Art, NY; Jewish Museum, NY; Yad Vashem, Jerusalem; Jüdisches Museum, Berlim; Deutsches Historisches Museum, Berlim, Gedenkstätte Deutscher Widerstand, Berlim, Staatliche Kunstsammlungen Kassel, entre outros).

Os desenhos de Horst Hoheisel estão sendo mostrados pela primeira vez em São Paulo, no Museu Lasar Segall.


Papel de Memória

A Alemanha e o holocausto se transformaram mundialmente no paradigma da necessidade de uma nação se ocupar intensivamente do seu próprio passado. Que significado tem a memória para o futuro da nossa sociedade e qual é o papel da arte nesse contexto? Ninguém tem dúvida de que os alemães vivem numa sociedade pós-traumática e de que os artistas certamente colaboram para isso, ao se dedicarem às feridas do passado.

Horst Hoheisel é um desses artistas que voltaram seu olhar para o passado. A convite de Marcelo Araújo e de Lorenzo Mammi, ele realizou dois projetos em São Paulo, junto com Andreas Knitz, que se referem às recentes e dolorosas feridas brasileiras: a reconstrução do portal de entrada do presídio Tiradentes como uma gaiola de pássaros, na proporção de 1:1, na Pinacoteca do Estado, e no Centro Universitário Maria Antonia eles guardaram para “restauração“ vestígios do antigo edifício que ainda remetem ao seu tempo de centro intelectual de resistência contra a ditadura militar.

Hoheisel não conheceu o Brasil de um bar nas calçadas de Copacabana, no Rio, nem do terraço do edifício Itália, em São Paulo, mas sim pela floresta impenetrável dos Yanomami. Um Brasil primitivo, que a maioria dos próprios brasileiros não conhece. Como uma ponta da flecha da memória, seus desenhos no Museu Lasar Segall revelam à nossa consciência o ameaçado mundo dos Yanomami. Mas nesses desenhos Hoheisel também dá espaço às suas associações pessoais, ao seu próprio mundo, e pelas pontas dessas flechas também ficamos conhecendo o artista Horst Hoheisel.

Os milhares de desenhos de Hoheisel não foram concebidos originalmente para uma exposição em algum museu. Pelo contrário, são desenhos quase “imostráveis”, um diário artístico inacessível desenrolado na forma de imensos rolos de papel, papel de memória.
Joachim Bernauer


Grande parte do trabalho artístico de Horst Hoheisel é dedicada àquilo que não se vê, ou deixou de ser visível. Não tanto para trazê-lo à tona e torná-lo presente –que seria uma atitude apenas consoladora. Na obra de Hoheisel, ao contrário, é o desaparecimento em si que adquire densidade de significado, enquanto obriga a um esforço de preservação na memória que é mais valioso da mera permanência material. Os anti-monumentos projetados e em parte executados na Alemanha (muitos deles em colaboração com Andreas Knitz) são tantas tentativas de fixar o alo emocional de uma perda: a fonte invertida e fincada no chão de Kassel, negativo exato e oco da fonte destruída; a placa aquecida e semi-escondida na grama de Auschwitz, onde existiu por um breve período um precário obelisco comemorativo; a projetada demolição expiatória da porta de Bradenburgo; e assim por diante.
Nessa mesma ótica de desaparecimento e rememoração é preciso ler os desenhos de Horst Hoheisel. Inicialmente, desempenharam uma função quase terapêutica: marcar no papel, todo dia, antes de começar a trabalhar, lembranças, ou sombras de lembranças quase ininteligíveis, resíduos de sonhos da noite anterior, impressões fugidias impossíveis de se explicitar claramente. Organizados em cadernos ou em grandes rolos de papel, datados um por um, formam séries aparentemente desconjuntadas, mas que na verdade rodam em volta de motivos que é possível identificar, por recorrência, analogia e semelhança.
Mais do que o caderno, o rolo talvez seja a imagem perfeita da relação que cada desenho entretém com o conjunto. Devido a sua grande extensão, é impossível desenrolá-lo por inteiro. O que se vê é sempre uma porção, um segmento bastante reduzido de uma configuração complexa, cuja maior parte permanece enterrada nos dois cilindros imponentes que cercam a área de papel aberta. Esses rolos são eles próprios um signo – figuras tão enigmáticas quanto os desenhos que carregam.
Não há, nos traços de Horst, a busca de um estilo, muito menos de um estilo unitário. Mas, sendo o estilo ele mesmo um ato de memória, há memória de muito estilos neles: do romantismo, do simbolismo, do expressionismo. De Redon, Dix, Beuys. Todas as imagens parecem, mais do que formas, vocábulos de uma narração interrompida. O bastão de óleo, quando se sobrepõe à grafite, funciona como um evidenciador, ou um abafador: realça um detalhe que se quer destacar no relato, ou esconde outro numa neblina indistinta. Num rosto de olho fechado, por exemplo, (um dormente?), a calota craniana se confunde com o perfil de uma montanha (e aqui o bastão de óleo branco marca as encostas retilíneas sobre a abóbada recurva da testa). No topo, uma abertura carnosa deixa entrever uma massa dourada, com aparência de moedas ou pepitas. Duas páginas, ou dois dias, mais adiante, um rosto quase informe carrega uma testa completamente dourada. Na página seguinte, um outro rosto dormente, um auto-retrato talvez, é agora quase inteiramente coberto por uma forma branca que lembra a montanha do desenho anterior, mas decomposta em múltiplas facetas, como um cristal, e conservando apenas, do dourado, um reflexo amarelo brilhando numa fenda. Há um tesouro aí, que às vezes se torna patente, às vezes afunda e escapa. É preciso capturá-lo e fixá-lo, depois passá-lo adiante. Dessa roda de meias palavras, todos nós fazemos parte.
Lorenzo Mammì


Horst Hoheisel


Sinais de Vida
Papel de Memória [Sao Paulo 2003]




Sinais de vida: desenhos de Horst Hoheisel

A mostra de Horst Hoheisel, que ocupará a partir de outubro a sala de exposições temporárias do Museu Lasar Segall, está inserida em uma das linhas da política de exposições da instituição, que pretende estimular o diálogo da obra de Lasar Segall com o trabalho de outros artistas.

Hoheisel é um artista reconhecido internacionalmente por seu trabalho conceitual em torno da memória e do holocausto, tema bastante presente na obra de Segall.

Não apenas dedicado ao trabalho conceitual em torno do Holocausto, a preocupação do artista em torno do esquecimento e memória, revela-se na problemática sobre o destino dos inúmeros desenhos que elabora quotidianamente há quase 20 anos. São anotações que assumem o caráter de um diário, como ora como registros dos sonhos da noite anterior, ora como testemunhos de seus sentimentos e vivências.

A atmosfera compulsiva do trabalho do ateliê e o problema do seu não-destino, materializados pelas pilhas e rolos de desenhos que se acumulam incessantemente, é o mote da mostra de Hoheisel no Museu Lasar Segall. Dessas pilhas, o artista retirou uma série de 50 desenhos feitos a partir de sua experiência com a tribo dos Yanomami, trazendo mais uma vez à lembrança, a ameaça do esquecimento.

Esta mostra estabelece diálogos institucionais com a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Centro Universitário Mariantonia, onde recentemente foram apresentadas instalações do artista em torno da rememoração dos traumas vividos pelos sujeitos confinados ou mortos pela ditadura militar no Brasil. Representa também o estreitamento das contínuas ações desenvolvidas em parceria com o Instituto Goethe, com o qual o Museu Lasar Segall vem desenvolvendo frutíferos projetos. Denise Grinspum

Horst Hoheisel

Nasceu em Posen, Alemanha, em 1944. Durante seus estudos em ciências florestais, foi aluno ouvinte na Academia de Artes de Munique. Promoveu a ecoanálise de uma floresta tropical da Venezuela, tendo sido assistente científico do Instituto de Engenharia Florestal dos trópicos na Universidade de Göttingen. Simultaneamente aos estudos de arte na Academia de Arte de Kassel, viveu numa comunidade indígena Yanomami no Orinoco- Amazonas, Brasil. Viajou, ainda, por diversas vezes para o deserto do Saara.

Durante mais de vinte anos, Horst Hoheisel dedicou-se artisticamente ao nacional-socialismo e, com Andreas Knitz, elaborou e realizou novas formas de monumentos que ficaram conhecidos internacionalmente como monumentos-negativos ou contra-monumentos (www.zermahlenegeschichte.de).

Ao lado dos marcos de memória em espaço aberto, seus trabalhos também fazem parte de diversos acervos de vários museus internacionais (Museum of Modern Art, NY; Jewish Museum, NY; Yad Vashem, Jerusalem; Jüdisches Museum, Berlim; Deutsches Historisches Museum, Berlim, Gedenkstätte Deutscher Widerstand, Berlim, Staatliche Kunstsammlungen Kassel, entre outros).

Os desenhos de Horst Hoheisel estão sendo mostrados pela primeira vez em São Paulo, no Museu Lasar Segall.


Papel de Memória

A Alemanha e o holocausto se transformaram mundialmente no paradigma da necessidade de uma nação se ocupar intensivamente do seu próprio passado. Que significado tem a memória para o futuro da nossa sociedade e qual é o papel da arte nesse contexto? Ninguém tem dúvida de que os alemães vivem numa sociedade pós-traumática e de que os artistas certamente colaboram para isso, ao se dedicarem às feridas do passado.

Horst Hoheisel é um desses artistas que voltaram seu olhar para o passado. A convite de Marcelo Araújo e de Lorenzo Mammi, ele realizou dois projetos em São Paulo, junto com Andreas Knitz, que se referem às recentes e dolorosas feridas brasileiras: a reconstrução do portal de entrada do presídio Tiradentes como uma gaiola de pássaros, na proporção de 1:1, na Pinacoteca do Estado, e no Centro Universitário Maria Antonia eles guardaram para “restauração“ vestígios do antigo edifício que ainda remetem ao seu tempo de centro intelectual de resistência contra a ditadura militar.

Hoheisel não conheceu o Brasil de um bar nas calçadas de Copacabana, no Rio, nem do terraço do edifício Itália, em São Paulo, mas sim pela floresta impenetrável dos Yanomami. Um Brasil primitivo, que a maioria dos próprios brasileiros não conhece. Como uma ponta da flecha da memória, seus desenhos no Museu Lasar Segall revelam à nossa consciência o ameaçado mundo dos Yanomami. Mas nesses desenhos Hoheisel também dá espaço às suas associações pessoais, ao seu próprio mundo, e pelas pontas dessas flechas também ficamos conhecendo o artista Horst Hoheisel.

Os milhares de desenhos de Hoheisel não foram concebidos originalmente para uma exposição em algum museu. Pelo contrário, são desenhos quase “imostráveis”, um diário artístico inacessível desenrolado na forma de imensos rolos de papel, papel de memória.
Joachim Bernauer


Grande parte do trabalho artístico de Horst Hoheisel é dedicada àquilo que não se vê, ou deixou de ser visível. Não tanto para trazê-lo à tona e torná-lo presente –que seria uma atitude apenas consoladora. Na obra de Hoheisel, ao contrário, é o desaparecimento em si que adquire densidade de significado, enquanto obriga a um esforço de preservação na memória que é mais valioso da mera permanência material. Os anti-monumentos projetados e em parte executados na Alemanha (muitos deles em colaboração com Andreas Knitz) são tantas tentativas de fixar o alo emocional de uma perda: a fonte invertida e fincada no chão de Kassel, negativo exato e oco da fonte destruída; a placa aquecida e semi-escondida na grama de Auschwitz, onde existiu por um breve período um precário obelisco comemorativo; a projetada demolição expiatória da porta de Bradenburgo; e assim por diante.
Nessa mesma ótica de desaparecimento e rememoração é preciso ler os desenhos de Horst Hoheisel. Inicialmente, desempenharam uma função quase terapêutica: marcar no papel, todo dia, antes de começar a trabalhar, lembranças, ou sombras de lembranças quase ininteligíveis, resíduos de sonhos da noite anterior, impressões fugidias impossíveis de se explicitar claramente. Organizados em cadernos ou em grandes rolos de papel, datados um por um, formam séries aparentemente desconjuntadas, mas que na verdade rodam em volta de motivos que é possível identificar, por recorrência, analogia e semelhança.
Mais do que o caderno, o rolo talvez seja a imagem perfeita da relação que cada desenho entretém com o conjunto. Devido a sua grande extensão, é impossível desenrolá-lo por inteiro. O que se vê é sempre uma porção, um segmento bastante reduzido de uma configuração complexa, cuja maior parte permanece enterrada nos dois cilindros imponentes que cercam a área de papel aberta. Esses rolos são eles próprios um signo – figuras tão enigmáticas quanto os desenhos que carregam.
Não há, nos traços de Horst, a busca de um estilo, muito menos de um estilo unitário. Mas, sendo o estilo ele mesmo um ato de memória, há memória de muito estilos neles: do romantismo, do simbolismo, do expressionismo. De Redon, Dix, Beuys. Todas as imagens parecem, mais do que formas, vocábulos de uma narração interrompida. O bastão de óleo, quando se sobrepõe à grafite, funciona como um evidenciador, ou um abafador: realça um detalhe que se quer destacar no relato, ou esconde outro numa neblina indistinta. Num rosto de olho fechado, por exemplo, (um dormente?), a calota craniana se confunde com o perfil de uma montanha (e aqui o bastão de óleo branco marca as encostas retilíneas sobre a abóbada recurva da testa). No topo, uma abertura carnosa deixa entrever uma massa dourada, com aparência de moedas ou pepitas. Duas páginas, ou dois dias, mais adiante, um rosto quase informe carrega uma testa completamente dourada. Na página seguinte, um outro rosto dormente, um auto-retrato talvez, é agora quase inteiramente coberto por uma forma branca que lembra a montanha do desenho anterior, mas decomposta em múltiplas facetas, como um cristal, e conservando apenas, do dourado, um reflexo amarelo brilhando numa fenda. Há um tesouro aí, que às vezes se torna patente, às vezes afunda e escapa. É preciso capturá-lo e fixá-lo, depois passá-lo adiante. Dessa roda de meias palavras, todos nós fazemos parte.
Lorenzo Mammì